Estamos encerrando o fatídico 2020. Um ano inimaginável. Se alguém antes nos contasse, não acreditaríamos por excesso de “imaginação”.
Ultrapassamos 2020! De maneira não usual. Sim, porque podíamos ter passado por ele no automático, como em tantos outros, mas esse nos tirou do automatismo. Explico: no lugar em que habitamos, nós nos acostumamos com as coisas. Para um olhar habituado, nada nos causa grande admiração. Basta viajarmos para um lugar desconhecido para observar atentamente e com apreço, o que, para os viventes de lá, talvez seja pura rotina. Vivemos 2020 com o olhar, os ouvidos e os demais sentidos aguçados.
Cada dia, um dia. Aprendemos a viver a sequência inapelável de outra forma. Sob constante e grave risco. Ultrapassando. A palavra não é por acaso. Não se resume a sair do automatismo, mas também a ultra-passar ou saltar sobre.
Explico novamente: duvido que você não tenha, de alguma forma, revisto a sua escala de valores. Coisas que valorizávamos bastante desceram na escala, outras, esquecidas ou postergadas, subiram. Eu, por exemplo, passei o ano inteiro vestindo as mesmas e poucas roupas e calçando os mesmos e poucos calçados. Optei pelos mais fáceis de lavar e higienizar, ao assumir trabalhos domésticos antes jamais rotineiros.
Ao constatar que muito pouco precisamos para viver, fiz, no inverno, a mais audaciosa doação anual de boa parte do meu guarda-roupa. Por outro lado, ocupei mais o tempo conversando com quem há muito não papeava e também dando mais tempo e atenção para quem me procurava. Sem dúvida, as relações subiram na escala de valores, enquanto as coisas declinaram.
As coisas que funcionam deram lugar ao que verdadeiramente importa. Algo que eu não soubesse? Sim e até tratei disso no livro O Velho e o Menino, mas uma coisa é saber, outra é fazer. Saber e não fazer é o mesmo – senão pior – que não saber.
Enquanto o normal dava lugar ao natural, lembrei do doutor Xavier, personagem do meu livro O Devir, quando dizia que “jabuti quando tem precisão sobe em árvore”. E foi o que aconteceu. Tive que me dobrar à tecnologia. Não fosse o isolamento social, levaria cerca de cinco anos para aprender o que consegui em um ano, por força das circunstâncias.
Considerando essas e outras ultrapassagens, o ano de 2020 foi de grandes aprendizados. Aprendemos pelo amor ou pela dor. Dessa vez, foi mesmo pela dor. Que o novo ano seja pelo amor.
Da dor ao amor, do normal ao natural.
Que o Natal seja menos Papai Noel e mais Menino Jesus.