“Eu gosto muito de cachorro vagabundo
Que anda sozinho no mundo
Sem coleira e sem patrão
Gosto de cachorro de sarjeta
Que quando escuta corneta
Sai atrás do batalhão”.
Com versos de Alberto Ribeiro na voz de Carmen Miranda, a canção Cachorro Vira-lata enaltecia, em 1937, o gosto pela liberdade e os prazeres da vida hedonista mundana. Mais adiante, seria caracterizada como um complexo, justamente o de vira-lata.
Quem lhe deu esse nome foi ninguém menos que o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, na segunda metade do mesmo século. Referia-se à imagem depreciativa que nós, brasileiros, fazemos de nós mesmos, principalmente diante dos estrangeiros. “Por complexo de vira-latas entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”, ele explicava.
Complexo de vira-lata é, portanto, aquela velha crença de que o melhor não está aqui, mas fora. Lá, tudo é melhor e funciona: a civilização, a democracia, a ética, a cultura, as artes. Aqui, tudo é precário e disfuncional. Faz parte do complexo idealizar quem é considerado superior.
Razões históricas não faltam para justificá-lo. Demoramos para nos assumir como brasileiros, pois tal alcunha se destinava apenas aos comerciantes do pau-brasil. Os demais nativos eram denominados pelos “colonizadores” como mazombos, ou seja, “grosseiros, atrasados, brutos, iletrados”, cuja principal ambição de vida seria deixar de sê-lo. Conseguiu-se: em vez de mazombos, passaram a ser brasileiros. Mudou a alcunha, mas a fama se manteve.
O detalhe da frase de Nelson Rodrigues está no “voluntariamente”, ou seja, por conta própria. Se o brasileiro empresta o seu olhar ao estrangeiro para que o veja como inferior e, por conta desse olhar, sente-se julgado, é um problema de projeção das suas próprias crenças. Por que, então, não mudá-las?
Para o economista e professor Eduardo Gianetti, o problema está em ter o complexo, não em ser vira-lata. No excelente livro O elogio do vira-lata, Gianetti enaltece as virtudes do que poderia soar pejorativo e não vê problema nenhum, no Brasil vira-lata, dessa mistura única de valores, atributos e sensibilidades afro-euro-ameríndio-descendentes tão bem traduzidos em O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro e os seus cinco brasis: o sertanejo, o crioulo, o caboclo, o caipira e o sulino.
O que falta ao povo brasileiro é um código que o faça enxergar a nobreza que existe em si mesmo. Reconhecer e assumir quem é, orgulhar-se e eleger gestos de elegância que caracterizem essa condição extraordinária de povo e lugar.
Penso, agora, nos versos de Celso Viáfora e Vicente Barreto, na genial canção A cara do Brasil:
“A gente é torto igual a Garrincha e Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se virar sozinho
Decerto então nunca vai dar”.