Não acordei inteiro, naquele dia. Algo deixou de despertar comigo ou em mim. Espiando o céu cinzento pela fresta da janela, logo notei que eu também carecia de brilho. Acordei sem sal nem sol.
Estava longe de ser um sinal de depressão, dessas que necessitam terapias e químicas de tarja preta. Não era, mesmo, o caso. O que havia desaparecido de repente ou aos poucos, sem que me desse conta, foi o ímpeto realizador e empreendedor que sempre me levava adiante, a intuição romântica com renovada mocidade e que parecia ter envelhecido antes da hora.
Sem ela, acordei mais só. Não havia motivos para agir. A paixão pelo trabalho tornou-se um fardo. Como a luz pode se transformar em cruz do dia para a noite? Como a vida pode virar simples lida, assim misteriosamente? Onde foi que perdi o ponto? Em que momento entornou o caldo? Quando foi que ela me deixou? Por quê? Resolvi perguntar pela ausente. Quem sabe encontrasse a resposta em minhas próprias recordações.
Quando menino, ela vivia ao meu lado. Brincávamos juntos e tudo era a mais pura alegria. Sonhava dramas e tramas, à sombra do abacateiro no imenso quintal da nossa casa, na esquecida cidadezinha do interior. Em meu pequeno reino, ela era a rainha, sapo virava príncipe e abóbora, carruagem; quando anoitecia, o lobisomem tomava conta do lugar. Muitas vezes, ela se unia ao nosso bando de moleques e aí era a maior festa. Nada nos detinha e a natureza, sua melhor amiga, se juntava a nós no mesmo contentamento.
Quando fiquei adulto, ela já não aparecia com a frequência de quem faz parte da família. Mas era sempre uma presença marcante, de olhar sedutor e vivo. Fazia com que minha visão se ampliasse e eu conseguisse enxergar coisas que ali estavam, mas eu não notava. Repentinamente, como em um quebra-cabeça que recebe a última peça, a imagem se tornava compreensível. Eu divagava entre o lógico e o lúdico, enxergando o que estava lá e imaginando o que não estava, mas fazia parte do todo. O importante é que tudo se revelava com sentido e significado. Nesses momentos, eu voltava a ser menino feliz, com um grato sentimento.
A sua proximidade – mesmo intermitente – traz uma delicada leveza. E revela o belo, na turbulência do viver diário. Sua mensagem, sutil, é de que não me abandona, mesmo adormecida. Assim, por mais agitadas que sejam as ondas, não afetam nem superam a calma do fundo do mar onde ela se abriga. E, depois de vê-la, é impossível retornar à superfície do mesmo jeito que antes.
Mas, agora, achei que a tinha perdido. Por mais fundo que mergulhasse, não conseguia encontrá-la. Sabia que ela não me queria assim, impermeável, protegido com a roupagem indicada para evitar os perigos das profundezas. Ela tem suas próprias exigências e contradições. É seu jeito de ser. Estava se ocultando. Guardava insondáveis mistérios.
Por onde andaria? Imaginei hipóteses, na tentativa de encontrar razões. Minha memória viajou no tempo e, depois de ter oferecido tantas ideias, só consegui uma série de testas franzidas. Incrédulas. Eu estava afogado pela ausência de reconhecimento, por constatar que meus esforços permaneciam invisíveis e desvalorizados, por me acabar em tarefas sem porquês, sempre com sede diante do copo vazio.
No cesto de lixo abarrotado, as ideias descartadas levavam consigo também intenções e desejos. Mas foi justamente ali, onde jamais pensaria procurá-la, finalmente a vi, reagindo em plena agonia, na tentativa de sobreviver. Ela persistia. E, de súbito, lembrei: recomeçar é da natureza do lixo.
A ele me entreguei com o entusiasmo de que tanto carecia. Como criança e jovem, de novo. Aberto a tudo que realmente importa!
Maravilhosamente sensivel! Gratidão pelo belo texto, Roberto!