Sócrates, passeando nos arredores de Atenas, com Glauco, irmão de Platão, escutou dele uma história. Era sobre um pastor que havia encontrado um anel e, ao colocá-lo no dedo, percebeu que se tornara invisível aos olhos dos outros. Ambos, então, seguiram filosofando durante longas horas sobre os desdobramentos éticos dessa história. Nenhum dos dois, no entanto, deu-se conta de que as mulheres e os escravos eram invisíveis na Grécia. Veja como a ética, mesmo entre seus precursores, também pode ser incoerente e sectária.
Se até o venerável Sócrates era vítima de suas miopias, quanto mais nós, seres comuns, ocupados com as miudezas e as mesquinharias do cotidiano, sem tempo para filosofar. Nessa vida mais de reação do que de reflexão, deixamos de enxergar muitas coisas, vítimas de nossa cegueira.
Desenvolver um olhar consciente – essa capacidade de revelar o velado – é, sem dúvida, um dos mais significativos desafios humanos. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, chama de “percepção mais abrangente” essa qualidade de olhar que examina o texto sem perder de vista o contexto.
O olhar consciente implica atenção reorientada que nos capacita a ver coisas antes invisíveis. Coisas que até parecem novas, embora estivessem presentes no mundo há milênios.
Uma maneira de desenvolver o olhar consciente ou a percepção mais abrangente é o distanciamento. Sem tomar distância da realidade, enxergamos apenas o texto e perdemos de vista o contexto. Mas é exatamente o contexto que nos oferece os fundamentos e os significados daquilo que enxergamos.
Vivemos em um momento de muitas notícias falsas – as chamadas e famigeradas fake news – em que frases e imagens são deslocadas de seu contexto, perdendo seus fundamentos e significados. Assim, descaracterizadas, são utilizadas tendenciosamente para gerar outros contextos, falsos e fantasiosos.
Sem distanciamento, deixamos de observar a perspectiva adequada para captar a realidade e discernir sobre quais serão nossas escolhas, decisões e atitudes a partir dessa compreensão. A percepção correta gera a compreensão correta que gera a ação correta.
O que nos faz especiais como humanos é essa capacidade de distanciar-nos, de separar-nos do conjunto, de nos tornarmos espectadores. Perceba que não se trata de algo físico, mas mental, que inclui distanciar-nos também das próprias crenças, ideias e opiniões para agir, em seguida, como atores conscientes e responsáveis.
Parabéns