Quando a autistóloga Kaká e André Lobe escreveram Propósito Azul – Uma história sobre o autismo, convidaram-me para inserir um capítulo que tratasse do tema propósito. Estava afiado, havia recém lançado O Velho e o Menino.
Hoje me reencontro com Kaká na Reatech, a feira internacional de tecnologias para reabilitação, inclusão e acessibilidade. Juntos estaremos no mesmo painel – Estratégias para promoção de uma cultura organizacional inclusiva – mediada pelo nosso amigo Marcelo Pires, o Telo, também coordenador da feira junto à Consolidar.
Compartilho o que escrevi na ocasião.
Quando o propósito descobre você
Existem palavras reverentes, apreciadas por unanimidade. Propósito é uma delas. A partir de um entendimento mais apressado, poderíamos torná-la sinônimo de objetivo, finalidade, intuito, sonho. Todas são mesmo correlatas a ela, mas não alcançam a sua magnitude.
Objetivo é o resultado que se espera de algo, geralmente transitório. Tão logo seja atingido, parte-se para outro. Finalidade é deixar mais claro o que se pretende, portanto, se encerra, em dado momento. Intuito diz respeito a uma inclinação ou direção. E sonho é aquilo que todos têm, seja dormindo ou de olhos bem abertos, mas poucos avançam além do onírico.
Propósito é muito mais, justamente porque não se limita ao transitório. É sempre transcendente. Daí a força sobre-humana de romper fronteiras, superar obstáculos, revelar competências e ultrapassar os horizontes do tempo.
Para ir além do transitório, um propósito não pode se limitar a atingir determinado alvo, pois nesse caso se assemelharia a objetivo, finalidade, sonho. Embora a origem da palavra, do latim proponere, corresponda a por (ponere) adiante (pro), algo, portanto, que vem na frente, um propósito é tanto o alvo, um lugar para alcançar, como o direcionamento da seta, o processo para chegar lá. Sentido e significado, juntos.
Etimologia à parte, o fato é que, da maneira aqui descrita, propósito é mais perseguido do que descoberto. E em vão. Parece que quanto mais se corre atrás, mais ele se distancia.
Quando escutamos histórias sobre vidas orientadas por um propósito, parece ser privilégio de alguns, os poucos afortunados cuja trajetória não se resume à trivial e fugaz existência concentrada em futilidades. A maioria não consegue uma vida enriquecida por um propósito com significado.
A matéria-prima do propósito é o desejo – ao elaborar este é que se descobre aquele. Se todos somos seres de desejos, por que somente alguns descobrem o seu propósito?
É possível ser protagonista de seus desejos, assim como Aladim que, sem hesitar, formula seus três pedidos ao servil gênio da lâmpada. Mas, como lembra muito bem Caetano Veloso, a “vida é real e de viés”, e nem sempre os desejos são apresentados e atendidos tão linearmente, como reza a lenda árabe milenar. Muitas vezes os desejos estão velados e algo – não raro drástico, sem o fascínio da história – precisa acontecer para que se revelem.
Paradoxalmente, nossos desejos podem estar aonde menos se espera, ou seja, nas contrariedades da vida. Entenda por contrariedades justamente o oposto do desejo, ou seja, aquilo que não queremos ou de que não gostamos. Algo de que tratamos de manter à distância, digno até de combate. Representam estorvos e entraves ao nosso bem-estar e comodidade. Assim, se dependesse de nós, jamais entrariam no crédito dos três desejos concedidos pelo gênio da lâmpada. São setas no sentido contrário do alvo que almejamos.
Diante disso, podemos adotar um entre dois tipos de mentalidade: a de destino ou a de desígnio. A primeira, trata de aderir à realidade tal como ela se apresenta. E daí, resolve o que fazer com ela. Talvez a amaldiçoe por não ser aquilo que gostaria. Quem sabe, nesse caso, a atitude adotada seja a de deixar as coisas como estão para ver como é que ficam. Assim, por acreditar que tudo está determinado, a mentalidade de destino leva à passividade.
Típica da criatura, a mentalidade de destino é incapaz de entender o indesejável. Procura subterfúgios para justificá-lo e se estressa com a luta inglória.
Os sentimentos advindos das contrariedades – desgosto, aborrecimento, raiva, ódio, medo – são diretamente opostos aos inspirados pelos desejos conscientes. Parece ser melhor evitá-los em vez de confrontá-los e, eventualmente, ter de se deparar com outros tão desagradáveis.
A segunda mentalidade, a de desígnio. Certa de que não é possível controlar a realidade, sabe que pode, sim, influenciar seu fluxo. Percebe que a vida é uma trama e intui que a atitude de criador é cerzi-la com os fios que lhe são postos.
É bom, no entanto, não confundir a mentalidade de desígnio, em que prevalece a atitude de criador ao invés da de criatura, com aquela de super-herói ou mulher maravilha. Heróis não vão dar conta do recado. É preciso admitir a própria vulnerabilidade e, corajosamente, encarar fraquezas e medos. Pois é nesse movimento humano que as potencialidades e as virtudes afloram.
As adversidades da vida podem alterar a consciência das pessoas. Quando se dá a elas outro significado, mudando também o sentido dos sentimentos, um propósito poderoso está prestes a se revelar. Diante dessa virada de chave, o mundo se transforma. Na relação com o tempo, a atitude é deixar de se ocupar com o que não é essencial. Modifica-se a relação tanto com as pessoas, agora atenciosa, generosa e compassiva, como com a vida, desfrutando-a com mais gratidão.
A alquimia transformadora dos sentimentos da contrariedade em desejos exige a humildade de admitir o quanto o mundo não está armado para o nosso gosto e o discernimento de aceitar e compreender que a vida não está aí para fazer as nossas vontades. É libertadora a descoberta de que um propósito é um testemunho do que a vida quer de nós, não uma declaração do que queremos da vida. E, quando escutamos o que ela quer de nós, a exemplo de Kaká e André, o propósito, até então inimaginável, nos descobre.